360 AZOREAN TORPOR
[ 2013 ]
ricardo vaz trindade | marta félix

concepção e encenação MARTA FÉLIX, RICARDO VAZ TRINDADE interpretação MARTA FÉLIX, RICARDO VAZ TRINDADE, XÉNON CRUZ desenho e operação de luz RAFAELA BIDARRA sonoplastia AFONSO MACEDO, RICARDO VAZ TRINDADE operação de som AFONSO MACEDO produção executiva MARTA FÉLIX grafismo RICARDO VAZ TRINDADE ilustrações AISHA RAHIM agradecimentos ANA CRISTINA MOSCATEL, ANA FÉLIX, ANA NABAIS, ANTÓNIO TRINDADE, ACADEMIA DAS ARTES DOS AÇORES, ASSOCIAÇÃO CORREDOR, AZUCENA DE LA CRUZ, BIBLIOTECA DA UNIVERSIDADE DOS AÇORES, BRÍGIDA BOTELHO, CATARINA CASTELLO, CASSILDA PASCOAL, CITAC, CRISTINA VALENTIM, JOSÉ PASCOAL, SÃO PEDRO PASCOAL, CARLOTA E MARGARIDA, DESCALÇAS COOPERATIVA CULTURAL, FILIPE RAPOSO, FREDERICO O’NEIL, HELENA PINELA, INSTITUTO DE CULTURA DE PONTA DELGADA, JOÃO VLADIMIRO, JOSÉ BRUM, JOSÉ DOMINGOS MACHADO, JUDITE FERNANDES, LAURA FERNANDES, LUÍS ESTRELA, MARIA JOÃO GODINHO, MARIA SIMÕES, MARIA DE LURDES, MONTSERRAT CIGES, NUNO FÉLIX, PAULO PATRÍCIO, PEDRO GONÇALVES, PEDRO PASCOAL, RAFAEL CARVALHO, RAFAEL PIMENTEL, RITA LOBO, RUI FARIA, TERESA AMARAL, TIAGO MELO BENTO, VASCO FARIA
Lisboa, Dezembro de 1928
Meu prezado amigo
Chegou-me hoje a tua carta lamentosa e desconsoladora. O que mais nela impressiona é que tu aí nos Açores, filho dos Açores, já não encontras os Açores.
Nada encontras do que nos seduzia e namorava. É na verdade desolador. O sol não brilha, o Atlântico austero já não tem luz nem movimento, as flores já não são coloridas e ridentes, os homens são taciturnos e mudos e até perderam as panças que nos divertiam e davam um aspecto de solenidade e de fartura sadia à cidade.
Pois imagina tu que chegavas a Ponta Delgada triste e acabrunhado, vendo tudo lento e a negrejar, e imediatamente, com um poder que te havia dado um espírito, certamente maligno, transformavas tudo – as ruas endireitavam-se, a Matriz com certeza desaparecia, deixando um largo imenso e desatulhado, os homens corriam com uma actividade estouvada, as casas aumentavam, os jardins floresciam mesmo no inverno, as flores tomavam um brilho que ofuscava, e até a doca – a vergonha das nossas finanças – crescia e se estendia na imensidade das águas; Ponta Delgada enfim limpava-se e embelezava-se, transformando-se numa cidade catita e garrida, respirando força, vida e beleza.
Contudo, pouco a pouco, à medida que deslizavas por sobre a maresia e penetravas na imensidade monótona das águas atlânticas, uma nuvem negra descia sobre a tua cabeça. A extensão deserta e triste das águas, infiltrava-se cada vez mais nos interstícios da tua alma, e uma lassitude indizível apoderava-se do teu ser portentoso.
E assim, a tua nova Ponta Delgada, ofuscante de luz, perante a tua lassitude esquisita, ainda mais te irritava. A tua impaciência chegava ao auge e explodias logo vingativo, inexorável, tremebundo: Espera que eu já te arranjo! Voltas a ser a mesma cidade torta e reles, dormente, cheia de esquinas, cheirando a bacalhau armazenado, a Matriz ao meio com o seu campanário disparatado a pingar as horas mornas sobre a cidade soturna. E de novo com facilidade e rapidez, a cidade luminosa e perfeita depunha as suas galas efémeras e voltava à sua Matriz infalível, ao seu Banco Ultramarino na esquina do lado de cima, à agência do Bensaúde e dos Carreiros, à rua dos Mercadores, escura e mal-cheirosa, à tasca do Dr. Agnelo com muitos clientes à porta, às suas lojas, ao seu burguesismo pacato, à sua fonte da praça velha, único indício de que em Ponta Delgada se não bebe só vinho, e de que também há água e gente séria.
Pobre universo se estivesse assim dependente dos nossos caprichos. A sua garantia, e até mesmo a nossa, é a sua imutabilidade. E agora, meu caro amigo, depois desta grande certeza que te envio e que acabo de descobrir (de que o Universo é imutável) podes procurar os Açores porque certamente encontrarás os Açores.
Um abraço imutável,
J.C.
360 Azorean Torpor é um espectáculo criado a partir de uma recolha epistolográfica sobre os Açores, efectuada em arquivos pessoais, bibliotecas, museus e universidades açorianas. Contém cartas desde o séc. XIX até ao presente, de personalidades como o Príncipe Alberto I do Mónaco, José do Canto, Bolhão Pato, Júlio Cabral, e de pessoas de que a História não guardou memória.